Começo este artigo com um brilhante posicionamento de Sérgio Cavalieri Filho, em seu Programa de Responsabilidade Civil, 7ª ed., Editora Atlas,São Paulo/SP, 2007, p. 79, senão vejamos:
“O que configura e o que não configura o dano moral? Na falta de critérios objetivos, essa questão vem-se tornando tormentosa na doutrina e na jurisprudência, levando o julgador a situação de perplexidade. Ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano moral e de sua inacumulabilidade com o dano material, corremos, agora, o risco de ingressar na fase da sua industrialização, onde o aborrecimento banal ou mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações milionárias”
E partindo desse ponto, importante esclarecermos o conceito do instituto do dano moral, que se caracteriza naquele dano resultante da ofensa aos valores abstratos humanos.
Na mesma obra acima citada, p. 80, Sérgio Cavalieri Filho nos dá uma lição sobre o conceito e caracterização do dano moral, quando deixa claro que “só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos. Dor, vexame, sofrimento e humilhação são consequência, e não causa.” (g.n.)
No mesmo sentido, o STF já entendeu que “legítima de afeição da vítima, que agride seus valores, que a humilha, que lhe cause dor.” (2ª Turma, Rel. Carlos Velloso, 08/06/2004, Revista Jurídica 321/110).
Diante desses pressupostos, podemos perceber que o direito à reparação do dano moral tem previsão em vários textos legais e encontra seu alicerce na teoria da responsabilidade civil, tendo como principal preceito o artigo 5º, incisos V e X da Constituição Federal de 1988.
Nessa seara, cabe explicar que, para ser configurada a obrigação de ressarcimento desse dano, é necessária a existência do nexo de causalidade entre a ação ou omissão voluntária, a existência de uma conduta ilícita e o resultado lesivo à esfera extrapatrimonial de alguém.
Vê-se, portanto, que este instituto jurídico tem fundamento em algo subjetivo, pois se refere aos sentimentos das pessoas e naquilo que elas entendem ser uma lesão aos seus direitos mais íntimos. E assim, por ser uma matéria que atinge a todas as pessoas, indistintamente, atualmente o dano moral tornou-se assunto comum entre a população e isso se deve à possibilidade de ressarcimento financeiro por essas insatisfações e aborrecimentos.
A falta de conhecimento técnico e legal para o entendimento do instituto do dano moral pelas pessoas comuns tornou-o um problema, pois por ser tratado sem nenhum cuidado, não tardou a ser banalizado.
Qualquer pessoa que se sinta ofendida hoje, seja qual for o motivo, em qualquer situação que considere ter sido ofendida, também se considera no direito de ser indenizada por “danos morais”, pois não deixa de ser uma forma de ser recompensada financeiramente pelos dissabores experimentados. O dano moral se tornou tão popular que qualquer conduta praticada em face de outro pode gerar indenização por danos morais, independente de sua gravidade e conseqüências.
A partir do momento que tudo é considerado dano moral e, por sua vez, passível de indenização, as pessoas começaram a encará-lo como uma fonte de renda, uma oportunidade de se “ganhar dinheiro” legalmente. Os juizados especiais tiveram um papel importante nessa caminhada, pois não é necessário advogado, nem pagamento de custas ou conhecimento de causa para se propor uma ação em face de outro porque se está insatisfeito com alguma relação que tenha firmado.
É comum presenciarmos filas enormes e intermináveis no setor de atermações dos juizados especiais e mais comum ainda que nos modelos de termos que substituem a inicial do processo já venham previamente escrito na parte dos pedidos: “requer indenização pelos danos morais sofridos”. E nesse instante me pergunto: que transtorno é este que pode ser considerado dano moral e, consequentemente, deve ser indenizado financeiramente? Desde quando o dano moral é algo presumível? Na verdade, ele não é! E é por isso que o instituto está tomando os rumos absurdos da banalização e industrialização, nas palavras de Sergio Cavalieri Filho.
O resultado desse fenômeno é que atualmente, grande parte das lides forenses que se acumulam nas varas cíveis e nos juizados especiais estaduais de todo o país giram em torno de questões referentes à responsabilidade civil, destacando-se, sobretudo, os litígios em que se pleiteia indenização por danos morais.
As relações de consumo batem recordes de demandas judiciais que envolvem pedidos de danos morais e isso se deve ao fato da própria lei 8.078/90, no art. 6º, VI, prever a reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
Neste contexto, mostra-se necessário a avaliação de cada caso em específico e a separação das situações de simples descontentamento contratual daquelas em que se evidencia um verdadeiro dano moral indenizável, principalmente avaliando-se o bem jurídico atingido e as peculiaridades de cada caso e de cada consumidor lesado.
Um dos pontos mais complicados na avaliação dos danos morais nas demandas judiciais é exatamente a confusão entre o que constitui mero aborrecimento, do próprio dano moral que infringe a esfera íntima de uma pessoa. O dano moral é muito mais que o simples dissabor, pois deve produzir efeitos no campo subjetivo e social.
A confusão desses contextos é tão grande que a jurisprudência com frequência faz observações importantes acerca dessa diferenciação, pontuando nas decisões o que é um mero aborrecimento e um dano moral, sendo que o primeiro não é indenizável.
O próprio STJ vem distinguindo esses pontos e temos como excelente exemplo a decisão relatada pelo Eminente Ministro César Asfor Rocha, da Quarta Turma, que nos dita que “O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige” (RESP 215666/RJ – DJ DATA 29/10/2001 – (Rel.) Ministro CESAR ASFOR ROCHA – QUARTA TURMA).
O assunto também vem sendo fortemente abordado nas instâncias de origem das ações e exemplo desse entendimento está expresso na decisão do Eminente Desembargador Cabral da Silva no julgamento da apelação cível nº1.0145.08.437009-0/001, oportunidade em que ficou registrado que:
“(…) primeiramente, deve ser esclarecido que o dano de cunho moral não resta caracterizado através da vivência de meros dissabores, aborrecimentos, chateações, contratempos, percalços, discussões, contrariedades, frustrações, decepções, incômodos, desentendimentos ou desacordos decorrentes da dinâmica social e negocial diária. Digo isto, porque tais situações são inerentes a natural interação humana e aos interesses nela insertos, logo, não são passíveis de causar danos intrínsecos em medida que caracterize dano moral. A situação ora analisada amolda-se como luvas às mãos ao acima exposto, pois, de maneira alguma, o desacordo quanto o cumprimento do contrato e o conseqüentemente desentendimento decorrente, constituem fatos capazes de causar, ao consumidor, dano moral, pois se tratam de possível e ordinária defluência quando há desacerto negocial,sendo certo que não foi praticada qualquer ofensa pessoal, exposição publica ilícita da imagem ou abalo intrínseco em intensidade capaz de produzir dor imaterial. Configura-se, tal situação com um aborrecimento, uma chateação, oriundo de desacerto negocial, mas, definitivamente incapaz de gerar dano moral (TJMG, julg. 09/12/2008). (grifos nosso).
Após algum tempo trabalhando com demandas judicias que envolvem o dano moral, é possível constatar como se tornou algo corriqueiro no judiciário. E esse fenômeno já foi observado pelos nossos tribunais, que também se mostram insatisfeitos com o tratamento que o instituto tem recebido nos últimos tempos.
Um excelente exemplo dessa insatisfação está expresso no voto proferido pelo eminente Desembargador Francisco Kupidlowski no julgamento da apelação nº 1.0702.07.370955-3/001(1), que vale ser transcrita por ser quase um desabafo em relação à questão:
“O absurdo toma conta do Judiciário no que pertine às pretensões indenizatórias por fatos que não passam de simples aborrecimentos, e, isto já anda provocando manifestações de repulsa em escritores contemporâneos como se registra com Antônio Jeová Santos, em sua Obra especializada:
“Nota-se nos Pretórios uma avalanche de demandas que pugnam pela indenização de dano moral, sem que exista aquele substrato necessário para ensejar o ressarcimento. Está-se vivendo uma experiência em que todo e qualquer abespinhamento dá ensanchas a pedidos de indenização. Simples desconforto não
justifica indenização. (Grifos do Relator). (“Dano Moral Indenizável”, 4ª Edição, Ed. Ver. dos Tribunais, ano 2.003, página 111).
(…)
Portanto, a indenização aos danos morais é incabível, na medida em que as sensações desagradáveis, por si sós, que não trazem lesividade a algum direito personalíssimo, não merecerão ser indenizadas. Nem tudo que acontece no cotidiano do ser humano deve ser indenizado, existe um “piso de inconvenientes” que deve ser suportado sem o pagamento indenizatório.
A propósito, a Doutrina:
“O dano moral que induz obrigação de indenizar deve ser de certa monta, de certa gravidade, com capacidade de efetivamente significar um prejuízo moral. O requisito da gravidade da lesão precisa estar presente, para que haja um direito de ação. Ao ofendido cabe demonstrar razões convincentes no sentido de que, no seu íntimo, sofreu prejuízo moral em decorrência de determinado ato ilícito. Alterações de pouca importância não têm força suficiente para provocar dano extrapatrimonial reparável mediante processo judicial. A utilização da Justiça deve ser deixada para casos mais graves, de maior relevância jurídica”. (In “Dano Moral”, de Arnaldo Marmitt, 1ª Ed. Aide, págs. 20/21). (…)” (grifos nossos)
Evidente, portanto, que a banalização do dano moral é um assunto que incomoda a todas as esferas do direito.
Precisamos ser mais cuidadosos ao avaliarmos as demandas que envolvem o dano moral e essa mudança precisa começar de baixo, desde a conscientização da população de que ao judiciário somente devem ser levadas questões realmente pertinentes. Devem ser deixadas de lado situações corriqueiras do cotidiano e mais ainda a busca pela vantagem financeira motivada por uma insatisfação ou chateação com uma relação jurídica. Temos que ter consciência que a justiça não suporta o excesso de demandas sem importância ou relevância jurídica. O dano moral não é uma fonte de renda e nem uma indústria, mas sim um modo de tentar amenizar os prejuízos morais que a vítima realmente sofreu. E essa conscientização não deve ser apenas das supostas vítimas, mas principalmente daqueles que trabalham com as leis, desde advogados aos magistrados.
O que percebemos é que, dia após dia, as pessoas não se suportam mais. Elas estão menos tolerantes à convivência humana e a cada problema, logo tentam auferir uma vantagem pecuniária, o que resulta nas diversas aventuras judiciais que superlotam nosso judiciário.
Se não mudarmos logo essa corrente de pensamento sobre o dano moral e sua possível indenização, daqui a pouco teremos que triplicar o número de juízes das varas cíveis e principalmente dos juizados especiais, pois não terá trabalho humano que possa suprir o número de processos judiciais em tramitação que, diga-se de passagem, em sua maioria, são propostos indevidamente e inconsequentemente.
Pollyanne de Oliveira Cunha – OAB/MG 129.727