A ATUAÇÃO DA “BHTRANS” PARA FISCALIZAÇÃO DO TRÂNSITO EM DISSONÂNCIA COM A INDELEGABILIDADE DO PODER DE POLÍCIA
O Estado, no desempenho de suas funções constitucionais, carece de poderes auxiliares para o exercício de suas atribuições, que se efetivam de acordo com as exigências do serviço público e o interesse da coletividade. Dentre esses poderes contingentes e instrumentais da Administração Pública, encontra-se o poder de polícia.
O termo “poder de polícia” deve ser analisado sob a óptica de dois aspectos, quais sejam, a proteção pela liberdade individual e autoridade da administração pública. Nesse sentido é que se observa a existência do princípio da predominância do interesse público sobre o particular e a atribuição de prerrogativas à administração pública que a coloca em situação de superioridade em relação ao administrado.
De acordo com os ensinamentos de Hely Lopes Meireles, vejamos: […] como certas atividades interessam simultaneamente as três atividades estatais, pela extensão e por todo território nacional (v.g. saúde pública, trânsito, transportes, etc), o poder de regular e de policiar se difunde entre todas as administrações interessadas, provendo cada qual no limite de sua competência territorial. A regra, entretanto, é a exclusividade do policiamento administrativo; a exceção é a concorrência do policiamento. (MEIRELES; 1992, p. 114)
Dividindo-se entre policia administrativa, que possui incidência sobre os bens, direitos e atividades, bem como polícia judiciária, que atua diretamente entre as pessoas, esse poder possui diversas prerrogativas e atributos, dentre os quais se encontram a discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade.
Ilustradas as considerações acerca do poder de polícia, passemos à análise da existência da BHTRANS:
O Estatuto da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S.A previu a competência da referida Sociedade de Economia Mista para aplicar sansões aos atos ilícitos de trânsito e proceder à sua arrecadação, ou seja, autoriza o exercício do poder de polícia pelo “particular”.
Ademais, o Código de Trânsito Brasileiro também prevê que as entidades executivas dos municípios pudessem exercer o policiamento e fiscalização das infrações de trânsito na cidade.
A Constituição Federal da República de 1988 também atribuiu ao município competência concorrente para legislar acerca da segurança do trânsito, sendo que tal prerrogativa deu azo a diversas discussões.
Percebemos, a partir das prerrogativas do poder de polícia, que o Estado possui um grande poder para limitar a atividade dos administrados em prol da garantia da ordem pública, econômica e social visando sempre a realização do bem comum. Essas características foram ressaltadas em decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão que modificou a decisão proferida pelo respeitoso Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que determinava que o poder de polícia pudesse ser delegável à BHTRANS: “No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público”. (BRASIL, 2006)
Isto posto, não podemos concordar que uma sociedade de economia mista, que tem por finalidade auferir lucros, possa exercer poder de polícia, limitando a liberdade e propriedade dos administrados, situação em que se encontra a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S.A.
O atributo de indelegabilidade do poder de polícia, objeto principal da presente discussão, é reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que as atividades típicas do Estado somente podem ser exercidas por ele mesmo.
Ainda nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello:
Salvo hipóteses excepcionalíssimas […], não há delegação de ato jurídico de polícia a particular e nem a possibilidade de que este o exerça a título contratual. Pode haver, entretanto, habilitação do particular à prática de ato material preparatório ou sucessivo a ato jurídico desta espécie. (MELLO; 2009, p 832)
Destarte, por mais que a doutrina seja majoritária no sentido de que o poder de polícia é indelegável, conforme dito alhures, percebe-se a flagrante arbitrariedade inconstitucional da legislação orgânica do Município de Belo Horizonte, que autoriza a BHTRANS, sociedade de economia mista, a exercer a atividade de poder de polícia naquela cidade, sem ter, para tanto, as devidas prerrogativas, agindo além dos limites fiscalizadores.
O artigo 23, inciso XII da CR/1988 previu a competência concorrente ao Município para implantar política de educação e segurança para o trânsito, ao passo que em tempo algum suscitou a possibilidade da atividade punitiva que tem exercido a BHTRANS na cidade de Belo Horizonte.
A Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS) tem desempenhado constante conduta arbitrária, sob alegação de cumprimento de sua função, comportamento esse que tem ensejado grandes discussões no enfoque legal, já que há flagrante extrapolação dos limites sancionadores.
O que se tem notado é uma existência da indústria de aplicação de multa que se tornou uma fonte de enriquecimento fácil para a sociedade de capital misto, haja vista que o número de multas aplicadas, em especial, referente aos rotativos espalhados na cidade de Belo Horizonte é alarmante.
As sanções aplicadas pela BHTRANS é um notório exercício do poder de polícia pelo particular. Frisa-se que nessa oportunidade não se sustenta a irresignação pela instalação de radares ou outros equipamentos contratados de particular para auxiliar na fiscalização do trânsito na capital, onde seria possível a terceirização do serviço ao particular, mas sim pela aplicação direta de multa, por agentes da empresa que não possuem atribuição para tanto.
A discussão acerca do exercício do poder de polícia pela BHTRANS foi objeto de diversas ações judiciais. No ano de 2005, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais sustentou que sendo o poder de polícia inerente à Administração Pública e recebendo o agente de trânsito delegação da autoridade competente para agir dentro dos limites da jurisdição do município, que este possui o poder-dever de aplicar as multas cabíveis ao ato infracional.
Não obstante, houve interposição de recurso para o Superior Tribunal de Justiça, havendo julgamento que reformou a decisão proferida pela Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos autos de número RE 638743, consoante ementa abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. CANCELAMENTO DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. PODER DE POLÍCIA. BHTRANS. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. FISCALIZAÇÃO E APLICAÇÃO DE SANÇÕES ADMINISTRATIVAS. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA CONFIRMADA. As sociedades de economia mistas são pessoas jurídicas de direito privado, criadas por autorização legal, apenas para que o Estado exerça atividades gerais de caráter econômico com o objetivo propício de lucro. O Município de Belo Horizonte, ao conferir à BHTRANS, legitimidade para fiscalizar e aplicar multas de trânsito, extrapolou seu limite de competência, porquanto, poder de polícia não pode ser delegado a particular, já que se trata atividade exclusiva do Poder Pública. (BRASIL, 2010)
A ação principal acerca da matéria, de número 1.0024.04.353035-1/001, movida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais se encontra pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal.
A matéria ainda não foi consolidada pelo tribunal competente e, diante da existência de Lei Infraconstitucional que concede à BHTRANS a prerrogativa de fiscalização e aplicação de sansões aos motoristas condutores de veículos na capital mineira, muitas multas já foram pagas até a presente data, gerando assim o enriquecimento ilícito da referida sociedade de economia mista, havendo assim conduta exaustivamente arbitrária.
Atualmente, a aplicação de multa diretamente pelo agente da empresa em comento se encontra suspensa. Todavia, as arbitrariedades continuam de forma disfarçada, ao passo que a BHTRANS tem sido acompanhada em suas atividades de regulamentação por agentes da guarda municipal da cidade.
Demonstrada a existência de duas correntes antagônicas acerca da limitação do poder de fiscalização atribuído à sociedade de economia mista BHTRANS, onde, por um lado, nota-se a presença de leis que preveem a aplicação de medidas sancionadoras para auxiliar no exercício de fiscalização, deixando assim a lacuna para o abuso do poder da pessoa jurídica descentralizada.
Lado outro, mormente sustenta a posição majoritária da doutrina e dos tribunais que insistem na definição de que não há possibilidade de delegação do poder de polícia, sendo esse privativo do Estado.
Nesse diapasão, conclui-se pela ilegalidade da atuação da BHTRANS para aplicação de multas sancionadoras, não podendo essa pessoa jurídica de direito privado, sob pretexto de sustentação da atividade fiscalizadora, aplicar sanções de caráter arrecadador.
Lívia Catarina Ferreira Santos – OAB/MG 129.251